Les dames et messieurs aux chiens - Gutemberg Armando Diniz Guerra

 





 Les dames et messieurs aux chiens



Gutemberg Armando Diniz Guerra



    As caminhadas matinais são inspiradoras, tanto quanto as vesperais e noturnas, se considerado um aspecto comum nas grandes cidades. A cada dia se somam cenas que passam em minhas retinas e vão se acumulando no disco duro da memória com pessoas e seus cães a passear e a me deixar sempre na dúvida de quem estaria levando quem a cumprir suas obrigações. 


Mulheres, sempre tranquilas, dóceis, magras ou rechonchudas, altas, de estatura mediana ou menor, louras, de cabelos negros, longos ou curtos, soltos, em tranças simples, elaboradas em cachos ou como rabos de cavalo, de tez branca, morena, negra, marrom ou cafusa, de vestidos compridos ou saias, de calças legging, bermudas ou calções, jovens, maduras ou idosas, solteiras, casadas, separadas ou viúvas, a maioria com alianças douradas sinalizadoras de seus estados civis. Sim, há homens também, senhores e jovens, todos com ares de quem cumpre a mais séria das atribuições existenciais, qual seja levar seus animais de estimação a irrigar bases de postes, muros e paredes da icônica cidade de Santa Maria de Belém do Grão Pará. Não só praticam a canina irrigação nitrogenada, mas também a adubação com matéria orgânica pastosa ou desidratada, muitas vezes, mas nem sempre, recolhida em saquinhos plásticos ou deixadas ao léu para os desavisados amassarem, escorregarem e levarem, para desespero dos faxineiros, aquela fetidez para tapetes e pisos limpos de residências e estabelecimentos comerciais.


Cada vez mais me impressiona a variedade de raças caninas tanto quanto a de humanos em diferentes situações. Há os donos e donas de pets, os passeadores de cães profissionais especializados nesse aparentemente simples conduzir feras domesticadas (dog walker), os serviçais que trabalham nas residências e assumem essas tarefas como adicionais ou fazendo parte da agenda de trabalhos contratados em suas diárias, mas vejo também os pais, as mães, os filhos raramente, as babás e toda uma legião de pessoas a serviço de suas majestades, os cães.


Os donos falam os nomes próprios com orgulho e ênfase de seus poodles toy, maltês, buldogue francês, lulu da Pomerânia, Yorkshire terrier, pug, Lhasa apso, pinscher, shih tzu, terrier escocês, west highland white terrier, dachsund, chihuahua, filas, pastores alemães e belgas, dálmatas e vira-latas. Eu, quando os reconheço, saúdo-os pelos nomes, sempre que me lembro das identidades de cada um deles e as associo às de seus portadores. Nem sempre eles me retribuem senão com aquele olhar canino de incompreensão e apreensão. Eu os perdoo, sempre porque não sei qual o estado de espírito de cada um naquelas horas de agonia da saída, ou de alívio da chegada, ou ainda, de reconhecimento do território em cheiros e levantadas de patas traseiras para demarcação de suas áreas. Enfim...


Nas reuniões de condomínio as pautas têm três pontos recorrentes e já estabelecida uma sigla para eles: CCC – Crianças, Carros e Cães. A boa convivência entre os vizinhos exige uma vasta negociação e estabelecimento de regras para o uso dos elevadores, a condução nos corredores sob contenção rígida e acordada para evitar litígios mordazes e ou latidos entre os de quatro patas, o que pode se estender aos bípedes, caso haja algum desajuste na diplomacia humano-canina.


Nem sempre a assepsia dos peludos é a mais perfeita e o cheiro de suor, baba e urina podem ser sentidos caso os cuidados não sejam suficientes para manter os bichinhos cheirosos e asseados como deveria ser nessas torres edificadas nas mini-Manhatans em que nossas cidades têm se transformado. Eles têm uma maneira típica de saudar os humanos, cheirando e às vezes lambendo os pés ou as partes que lhes estejam ao alcance. Há quem goste e até retribua os carinhos, mas há os que estranham essa sociabilidade e se incomodam ao ponto de a irritação provocar do simples enrubescimento a explosões desproporcionais, quase atômicas. Longe deve estar qualquer reação ou expressão de desrespeito a essas criaturas, sob pena de se estabelecer uma verdadeira terceira guerra mundial ou uma judicialização internacional via rede das sociedades de defesa dos direitos dos animais espalhadas pelo planeta. 


De minha parte, acho-os graciosos e sempre cordiais, a ponto de nunca ter sido mordido por nenhum deles ao longo de minha existência. E olhe que sempre me expus até mais do que a maioria dos mortais, seja em minhas caminhadas matinais em vilas, povoados e cidades do interior de nosso país em que os quadrupedes estão mais para donos do território do que nas metrópoles onde tive a oportunidade de visitar e morar. Não tenho nenhum motivo para medo nem rancor, mas mantenho uma distância regulamentar que aprendi a manter dos quadrúpedes em lições humoradas de um brilhante professor de zootecnia na Imperial Escola Agronômica da Bahia, em Cruz das Almas, onde estudei na juventude, há muito tempo atrás. Acrescentei aos conselhos afonsinos a estratégia de nunca diminuir o ritmo da marcha, tampouco usar cabos de vassoura nem porretes como armas nem fazer gestos agressivos para os ameaçadores latidos, grunhidos e olhares nervosos dos senhores das ruas. Sempre deu certo! 


O motivo dessa crônica, entretanto, é a imagem que me inspiram as damas e senhores compenetrados em seus afazeres de cuidadores e amantes amadores de cães. Solicitei ao meu ilustrador preferido uma pintura sobre o assunto, no que fui imediata e apressadamente atendido. Eu mesmo pensei em produzir uma série de aquarelas ou deixar a dica do tema para algum de nossos brilhantes pintores nacionais, embora o que me venha a cabeça seja um título a ser colocado, sem esnobismo, em francês, nalguma dessas pinturas ou na série predestinadas ao sucesso em museus internacionais como os de Nova York, Londres ou Paris: les dames et les messieurs aux chiens.

Comentários

  1. Fico encantada com o jeito seguro que o professor Gutemberg brinca com as palavras, sempre que leio seus textos, imagino as palavras formando pares perfeito num bailar sincrônico. Parabéns professor Gutemberg.

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