Resenha: Bichos e plantas na Amazônia. Uma viagem em páginas para colorir


 


Resenha:

HONDA, Camila. Bichos e plantas na Amazônia. Uma viagem em páginas para colorir. Belém: Editora Paka-Tatu, 2025.



Por Gutemberg Armando Diniz Guerra

      

     Como se não bastassem as dificuldades naturais para o aprendizado com exemplos vindos de outras culturas e, ainda depois de termos caído nas armadilhas das hipnotizantes tecnologias eletrônicas, muitos são os diagnósticos sobre os males que têm sido identificados pelo excessivo tempo de exposição dos mais jovens e, também, dos mais avançados em idade, ao domínio efetivo do mundo virtual. Nas crianças e adolescentes, a perda de contato com o mundo real implica no afastamento das possibilidades de refinamento da sensibilidade motora e das habilidades manuais e físicas que vão se transformando e substituindo pelos deslizes digitais, encantamentos da animação e limitações provocadas pelos condicionamentos visuais e de raciocínio. O caráter educativo que pode ser explorado inclusive nas sofisticadas tecnologias que eu critico, mas estou longe de negar a importância como instrumento, não deve excluir as boas e velhas técnicas de domínio da capacidade motora e de interpretação do real.

Viagens, folguedos, jogos suados, contatos com a natureza e as artes podem ser mecanismos que devem continuar a serem acionados para evitar ou, pelo menos, diminuir o que já se perdeu e vem se deteriorando por práticas e contato excessivo com as tecnologias e artificialidades contemporâneas. Mais do que isso, a colonização a que fomos submetidos continua a nos impor padrões culturais distantes da nossa realidade. O fato é que não há como deixar de utilizar as tecnologias virtuais, mas nada impede que se estimule as crianças e os adultos ao uso dos velhos e bons truques das artes do desenho e da pintura, fundamentados na observação e registro dos detalhes de textura e cor que a natureza oferece.

Vasculhando algumas livrarias do centro de Belém, constatei a existência de vários livros e cadernos para crianças desenhar e colorir elementos da natureza, mas sem que nenhum deles tivessem foco na Amazônia. Sei que há publicações com temáticas destacando elementos dessa região emblemática do planeta, mas restritas à circulação local e de acesso em editoras e gráficas de pequeno e médio porte. Uma negação escandalosa de tudo o que se diz e se constata existir nesse ambiente rico tanto de natureza quanto de cultura.

Quem vive nas cidades e nos campos, ou entre eles, desenvolve uma sensibilidade diferenciada, principalmente se tiver estímulos para a contemplação do mundo artístico. Camila Honda nos deu uma pista nas informações biográficas que constariam em parte no seu livro, de como adquiriu a sensibilidade que nela se espraia. O que ela disponibilizou em algumas linhas da versão original que recebi para apreciação rezava assim: 

Quando me perguntavam o que eu queria ser quando crescesse, eu respondia: bailarina. Mas pensava que mais tarde seria pintora. Não contava que no meio do caminho também seria cantora e compositora. Talvez isso tenha a ver com os diários, onde eu escrevia coisas tão sentimentais que por volta dos 8 anos, reuni todos os que tinha e atirei as folhas rasgadas pela janela com medo que alguém as lesse.  

O livro Bichos e plantas da Amazônia de certa forma resgata parte dessa arte que Camila Honda jogou pela janela e nem fez constar essa parte na orelha da edição que vem à luz, mas que também não saiu dela porque sensibilidade desenvolvida gruda na alma das pessoas ou faz parte da essência dessa alma. 

O livro me impactou quando vi a edição física. Ele me pareceu luminoso, iluminado, iluminante e, ao folheá-lo, senti que é um apelo poderoso para nos reconectar com a natureza amazônica em uma viagem em páginas para colorir, como diz o subtítulo do lindo e envolvente compêndio. Eu diria que é muito mais do que isso porque induz ao traço no desenho preciso que me faz lembrar as expedições científicas dos naturalistas dos séculos XVII e XVIII. A propósito, em Lisboa, os desenhistas que fariam parte das viagens dos lusitanos pelo mundo afora eram formados na Casa do Traço, uma espécie de escola de arte encarregada de dar instrumentos para o registro visual de tudo o que se pudesse ver no que chamariam de Novo Mundo. Vendo os desenhos de forte inspiração didática, relembrei as aulas de Botânica e de Entomologia no Curso de Engenharia Agronômica em Salvador e Cruz das Almas, respectivamente. Eu ainda os guardo em pastas amarelecidas pelo tempo como memória dos tempos de formação. Inevitavelmente me brotou no imaginário as pinturas botânicas de Margaret Mee. Oxalá esse investimento desperte sensibilidades e inspire nessa linha da estética calcada na natureza. 

Bichos e plantas na Amazônia é, fundamentalmente, uma delicada e robusta proposta de resistência ao generalizado assédio feito a nossas crianças, amazônicas e brasileiras, pelo mundo virtual tanto quanto por uma literatura concebida em outros universos culturais. Nada contra elas, desde que não esqueçam que estamos ancorados e vivemos na Amazônia que é um lugar com todas as possibilidades de qualquer outro canto em que há inteligência humana interagindo com a concretude que canta, farfalha, rumoreja e se move em forma de vida caracterizada nos três reinos da natureza.

Mais do que uma viagem, essa proposta contida no livro de Camila Honda é um mergulho de olhos abertos no rico universo que nos cerca nessa exuberante região em que temos o privilégio de estar. Bichos, gentes e plantas, fauna, humanos e flora, sociobiodiversos e multicoloríveis, nativos e exóticos se oferecem em preto e branco para que se lhes possam esbanjar nas cores a ser dadas por lápis, aquarelas, canetas e tintas quaisquer que sejam. É um aceno para exercitar a arte da criação e reproduzir o que se vê no cotidiano de bosques, parques, museus e na natureza que existe nas ilhas, lagos, igarapés e matas desse lugar maravilhoso que é a nossa Amazônia.

Ainda que algumas crianças conheçam ou não estranhem alguns desses exemplares de animais e plantas, por já terem visto em nossos parques, bosques, museus e jardins, será muito bom que tenham mais informações e exercitem lhes dar cores no papel pelas suas próprias mãos armadas de instrumentos tradicionais como pincéis e grafites. O cuidado na elaboração de Camila Honda em parceria com a Editora Paka-Tatu não deixa de fora o fato de que o papel seja certificado pela origem de reflorestamento, que o tamanho e formato das letras seja adequado a todas as faixas etárias, que a cor e textura do papel favoreçam o contraste e conforto visual e que os desenhos estimulem as pessoas a conhecerem a morfologia e aspectos botânicos e zoológicos da flora e fauna presente em nosso cotidiano.  

Este é o primeiro livro de Camila Honda. Ele pode ser uma espécie de montaria que conduzirá crianças e adultos que não tenham se deixado endurecer no coração e nos olhos a deixar fluir suas energias como artistas que certamente existem e precisam ser liberados em cada um de nós. Eia, pois! Vamos ver que resultados poderemos ter dos olhares de quem tem ousadia e muito vigor criativo reprimido! Liberem-se derramando cores nos Bichos e Plantas na Amazônia, esse instrumento lúdico e educativo de contemplação e recriação da natureza em sua mais completa concepção.

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