Resenha: Encantaria - Gutemberg Armando Diniz Guerra
Resenha: Encantaria
FERREIRA, Fabrício. Encantaria. Ouro Preto: Caravana Grupo Editorial, 2024.
A aparência modesta da capa do livro de Fabrício Ferreira, com elementos simbólicos claros, é prenúncio de belíssimo texto com endereço certo para crianças e adolescentes, reforçando a ideia de que temos uma vigorosa literatura produzida na região, o que vem sendo negado por interesses escusos aos dos amazônidas,. Considero a capa modesta apenas porque as tonalidades suaves não dão, a meu ver, a dimensão do drama narrado, o que talvez seja intencional por parte da ilustradora para não assustar demais os possíveis leitores. A paisagem ribeirinha em tons brandos predominantes de verde, azul e amarelo, com marrons na construção de casa e barco, assim como a cobra que vem no canto direito, com a boca aberta, ameaçando seres ou sombras de humanos, embora aterrorizante, se olhada com atenção, não desperta medo maior pelo distanciamento que os tons fazem remeter a sonho, fantasia ou ... encantaria. A imagem da primeira capa se completa na quarta, mostrando um ambiente rico de flora e fauna. Devo exaltar a qualidade do desenho e da pintura que demonstram domínio elevado das técnicas dessas artes. Internamente, entremeando o texto, outras ilustrações em preto e branco enriquecem mais ainda a obra e a tornam muito instigantes para conhecer as lendas amazônicas.
A leitura do livro, em um primeiro momento solitariamente, me convenceu e, por isso, resolvi ler depois para uma criança de dez anos, confirmando minha impressão da força do texto que fiz questão de caprichar na locução quando narrada ao meu pequenino ouvinte.
A riqueza da cultura amazônica em diversidade de personagens e mensagens inspiradoras para uma relação saudável com a natureza e o meio ambiente são pontos fortes da narrativa desenvolvida por Fabrício Ferreira. O desejo de crianças e dos adolescentes em fazer incursões no desconhecido faz parte desse universo em que as descobertas, deslumbramentos e aventuras os incitam à experimentação, ainda que muitos riscos existam tanto quanto a necessidade de tomadas de decisões e assumir as consequências delas. Nesse sentido, o livro oferece possibilidades de diálogo e reflexão com essas faixas etárias.
Custa tempo e recursos financeiros para se fazer publicar e cobrir o investimento dessa aventura principalmente em tempos de desestímulo ao livro físico por gestores públicos e por um mercado agressivo e muito competitivo. Só quem publica pode entender o quanto de adrenalina e angústia se descarrega nessa aventura.
Em dez secções com títulos sugestivos, a narrativa se desenvolve apresentando os mistérios e encantarias presentes no cotidiano do meio ribeirinho amazônico. Cobra grande ou boiúna, Curupira, Mapinguari, Pirata, Amazonas, Icamiabas, Muiraquitãs, Boto, lobisomens, rasga-mortalhas e outras encantarias são mobilizados para dar corpo ao enredo em que duas crianças se engajam para viver uma pitada intensa de perigos e mistérios.
Problemas da região em conflito pelas mudanças na economia também entram no conteúdo. As crianças protagonistas da história tanto quanto suas famílias estão em um ambiente ameaçado por grandes empreendimentos que chegam autoritariamente, ameaçando expulsar as populações tradicionais que resistem pela união entre os comunitários e suas lideranças.
Conheci Fabrício Ferreira pessoal e rapidamente em um evento de resistência cultural promovido pela Editora Paka-Tatu, em Belém, quando pudemos conversar rapidamente sobre seu livro e, oportunamente, fiz a aquisição da obra que agora resenho. Naquele momento ficou evidente a sua criatividade e habilidade na arte da interpretação e ilustração, tanto quanto pude vislumbrar o excelente contador de estória que estava ali presente. Lendo e relendo a obra, a certeza é de que outras pessoas poderão aproveitar dessa abordagem e compreender melhor o sofrimento e dificuldades enfrentadas pelos moradores da Amazônia ao ver sua cultura agredida e muito ameaçada por todos os lados. Espero poder dialogar com mais vagar e aproveitar do conhecimento desse jovem e promissor escritor amazônico não apenas pelos seus escritos, mas também pelas manifestações que venha a fazer em apresentações em seminários, colóquios, simpósios, rodas de conversas e similares. Guardem esses nomes e referências e, se tiverem a oportunidade, não percam!
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