Resenha: Em Proseios. Gutemberg Armando Diniz Guerra




Resenha por Gutemberg Armando Diniz Guerra

Benevides, Dôra. Em Proseios. Jaboticatubas, Arte Impressa, 2025.



    Ler Dôra Benevides é um deleite maravilhoso. Com uma linguagem cristalina, bem-humorada, elegante, é como se ela estivesse conosco na varanda ou no jardim – sim, eu li mesmo parte desse seu segundo livro na varanda das alturas onde moro e outra parte às margens do Rio Guamá, embaixo de um ipê florando. Degustei o desfiar de suas histórias recheadas de vida e alegria que só os seres de luz emanam. Dôra é dessas pessoas amigas que não saem da gente desde que se fizeram por nós conhecer, seja pessoalmente, seja, acredito, para quem dela vier a tomar conhecimento pela leitura de seus escritos ou de suas locuções. 

Nascida em Itiúba, no sertão baiano, Dôra Benevides migrou ainda menina para Salvador, adotada por uma tia materna, onde fez o curso de Enfermagem na Universidade Federal da Bahia, viveu em Camaçari e depois migrou para o Planalto Central onde encerrou sua carreira laboral formal. Vive ali há três décadas, a inventar maneiras de ser feliz degustando seus pratos de receitas gastronômicas criativas, leituras e escrituras de memórias em verso e prosa. 

Sua criatividade se espraia e manifesta desde o título deste seu, repito segundo livro, agora em prosa, mas que ela traduz como se estivesse em estado de proseamento, passeando por este estilo literário, em proseios. Correndo o risco da vulgaridade, mas considerando a militância feminista da autora e, mais ainda, imaginando criança no colo ouvindo as histórias desta sertaneja, uma interpretação possível do título seria: em pro-seios. Tomo a liberdade de propor uma ponderação ao exacerbado feminismo principalmente no caso em que está envolvido o galinheiro de Menininha. Ao que nos permite a interpretação do texto, só os galos envelhecem e levam a culpa pela queda na produção de ovos, fonte de renda da criadora de aves. Será?

A estratégia narrativa de Dôra Benevides nos insere no seu cotidiano afetivo por muitas sutilezas, como descrever em detalhes o comportamento e tratar seus genitores no diminutivo: Seu Ricardo é frequentemente chamado de painho e Dona Lourdes de mainha. Ela repete em várias crônicas o fato de ter sido adotada pela tia, pelo contato mantido com a família biológica, e por outras adoções que teria lhe ocorrido ao longo da vida por mulheres que lhe dedicaram um afeto maternal que ela não poupa em reconhecer e agradecer. Chega a ser pungente a homenagem prestada ao pai adotivo, José, em apenas uma crônica de página e meia, mas de uma densidade humana comovente.

Para não perder a minha mania de contar, são 52 crônicas generosamente ofertadas. Nelas se tem uma energia ora zen, ora desesperada, ora anedótica, ora melancólica, ora filosófica, com variações que vão descrevendo as situações que poderiam ser as mais estressantes para algumas pessoas, mas na linguagem de Dôra Benevides se transformam em refinadas fatias de humor e, invariavelmente, de ternura. 

Eu conhecia parte dessa obra pela divulgação feita em locuções durante o período da pandemia, recurso que a nossa querida amiga escritora utilizou para superar aquele tempo tenebroso em que estávamos verdadeiramente ameaçados, vulneráveis e assustados com a gravidade que nos exigia o máximo de cuidados com a saúde. Outra parte era para mim inédita. Algumas crônicas revelam valor histórico e nos deixam curiosos para saber mais detalhes e esclarecimentos, como a sobre uma gravação feita de pronunciamento de Tancredo Neves a lideranças de municípios baianos considerados de segurança nacional pelo regime militar, como era Camaçari, onde a escritora morava em 1984 e tinha como companheiro o futuro primeiro prefeito eleito daquele município após o período discricionário.

Devo confessar minha admiração pela maturidade de Dôra Benevides em se expor contando fatos de sua biografia pessoal, inclusive com detalhes íntimos, tanto quanto descreve personagens e tipos reais, mantida a elegância de lhes preservar a identidade, quando a ética exige, mesmo com o distanciamento temporal e espacial que dilui a gravidade ou vulnerabilidade nos eventos relatados. São casos afetivos, de iniciação e vida conjugal, viagens e práticas do exercício profissional em espaços e tempos que cobrem toda a sua trajetória de vida. São casos inspiradores e encorajadores para quem os leia porque fazem evocar as experiências de cada um de nós. Sabendo disso, Dôra convida a todos para que compartilhem, como ela, esses relatos, abrindo para um diálogo ou uma roda de conversa ricos de troca de experiências.

Sobre tipos e personagens, alguns merecem destaque pela importância que adquirem ao longo do livro. Embora, no início, não me tenha ficado claro o critério de organização escolhido por Dôra Benevides, não há uma linearidade temporal nem de mobilidade espacial na sequência das crônicas, tampouco pude aferir o grau de anedotismo, nem de ineditismo ou hilaridade neles presentes. Alguns personagens ganham densidade na medida em que vamos avançando na leitura. É o caso de Menininha que vai sendo revelada como uma militante feminista que sai da postura de timidez e ensimesmamento para se tornar muito mais do que importante liderança comunitária, uma amiga para todas as situações. Vamos encontrá-la acompanhando Dôra Benevides em Camaçari e Brasília, e tomar conhecimento de sua história de vida exemplar como mulher, mãe, esposa e companheira de militância política. Pelo narrado, Menininha merecia um romance escrito, pois que sua vida é realmente muito marcante, o que não é tão raro entre as mulheres do povo.  

Alguns tipos citados, embora tenham biografias tão ricas ou até mais do que a de Menininha, eu sei por ter convivido com alguns deles, aparecem apenas pontualmente nessa coletânea. Não vou citar nenhum deles, mas quem leu ou se der ao prazer de ler vai entender muito bem do que estou falando.

Ao longo da leitura foram surgindo perguntas e mais perguntas. Umas foram sendo respondidas, outras ficaram como pulgas atrás das orelhas, a pedir respostas. Não sei se conscientemente ou não, os esclarecimentos vão se dando aos poucos, dando-nos a conhecer a autora, os seus familiares, os amigos, os companheiros de militância política, os contextos em que os fatos acontecem e se desdobram e, mais ainda, como se construíram as reflexões partilhadas pela autora nessa maravilhosa aventura literária. É claro que as minhas indagações não respondidas eu farei direta e oportunamente à Dôra Benevides por ter o privilégio de sua amizade e fico me interrogando que outras lebres ela fará surgir em outras cabeças e moitas que colherem dessa lavra tão produtiva. 

Um dos aspectos que me chamaram muito a atenção é que Dôra Benevides descortina um universo feminino rico e mutante, principalmente para as gerações pós-68. Dá pistas importantes para compreender o feminismo brasileiro com suas características evolutivas em que o homem é incluído, majoritariamente como o ser dominante, machista, violento, mas há também, em alguns relatos, uma certa complacência admitindo haver alguns esforçados por serem menos truculentos e, a esses, ela atribui, delicadamente, uma alma feminina. Há mesmo um caso bem atípico de uma espécie de hermafrodita que muda de gênero a cada seis meses. Pode? Em literatura tudo pode, mas tanto nesse aspecto como em outros, é sempre bom estar atento às ponderações e reflexões sobre a variedade de experiências existenciais que o mundo concreto comporta. Pensando bem, por mais rica e criativa que seja a literatura, o mundo concreto tem mais facetas do que o nosso intelecto consegue perceber e transmitir em arte ou em sisudas traduções acadêmico-científicas.

Para finalizar, a impressão que ficou é de que a lógica de organização de Em Proseios (ou Em Pro-seios) vai do passado mais recente para o passado mais remoto. Insisto na proposição de desdobramento do título porque Dôra Benevides confessa ter tido muitos colos e sinto que ela dará o seu nesse contar de crônicas tão rico de sentimentos de acolhida, ponderação e ternura. Algo me sugere que em sua militância política ela teria ouvido e, mais do que isso, posto em prática a prosaica frase do guerrilheiro latino americano morto na Bolívia. Embora confesse ter se distanciado da base, ela permanece firme em suas posições e sonhos de transformação da sociedade, mas sem perder a ternura.

E se me permitem um conselho e recomendação incisiva sobre Em proseios, não posterguem a leitura dessa pérola sertaneja burilada, na zona metropolitana de Salvador, lapidada e ofertada a partir do Distrito Federal em módicos e minguados caraminguás. Não se arrependerão e engrossarão as fileiras dos fãs de Dora Benevides tornando-a devedora de mais escritos a serem liberados de sua fecunda criatividade.

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