Resenha: Lugar de se morrer é também o poema



Resenha: TAVARES, Roberta. Lugar de se morrer é também o poema. 2ª ed. Belém: Ed. da autora, 2023.

Por Gutemberg Armando Diniz Guerra


         O longo e dramático título nos convida a um mergulho prevenido, assustado, precavido e de certa forma... frustrante. Morte e Poema são duas palavras que regem o conjunto da obra aqui resenhada e, pelo declarado por ela mesma, marcaram a vida da autora. Pelo que se pode perceber, o poema, para Roberta Tavares, é uma espécie de forma de resistência às agressões, perdas, feridas, partidas, mas principalmente uma modalidade de ressurreição, ao contrário do que propõe e anuncia na capa. O título faz uma espécie de contraponto dialético com o conteúdo do conjunto de poemas que o livro oferece. Ele enuncia o poema como um “lugar de se morrer”, mas o que se diz lá dentro, em diversos momentos, é, repito novamente, justamente o contrário. 

Considero que nesse livro Roberta Tavares se apresenta como gostaria de ser vista: mulher negra, sem preconceitos nem limites de gênero, militante política com posições bem definidas, sensível aos sofrimentos dos mais humildes, escolarizada como universitária no campo da história, engajada na produção e difusão de conhecimentos e amante das artes em que a literatura tem destaque.

Eu a vi, pessoalmente, em um evento de resistência cultural ao desmonte das instituições e ações de fortalecimento da literatura produzida no Estado do Pará. Ouvi sua fala e adquiri o seu livro. Somente ao ler é que soube estar em segunda edição, desta feita apoiada por uma emenda parlamentar do então Deputado Federal Edmilson Rodrigues, do PSOL. Não posso dizer que a conheço porque tudo o que sei dela é resultado desse primeiro contato e do que pude ler e interpretar do livro. Mas também não posso dizer apenas “sei quem é”, frase utilizada para minimizar o conhecimento sobre alguém. Ter visto, lido um trabalho com as revelações de Lugar de se morrer é também poema é ter participado de alguma forma da intimidade da autora. Espero, sinceramente, que esta resenha possa me dar retornos mais consistentes de conhecimento dela.

Embora curioso por saber quem era e qual o destaque que lhe fez estar na mesa da I Feira de Literatura Independente – I FLINT, realizada em maio de 2025 na Casa da Linguagem, em Belém, contive por vários dias minha ânsia de descortinar essa instigante autora. Só fui ler seu livro depois de amainada, dominada e aplacada a cuíra. Era uma espécie de sentimento contido para não interpretá-la no calor da provocação do primeiro contato.

Na manifestação oral que ela fez naquela ocasião, fez críticas aos principais movimentos e expressões do domínio oligárquico do Estado. Isso me pareceu uma forma de se destacar naquela noite, atiçando os ouvintes e demarcando um posicionamento claro de sua visão de mundo. Outra maneira de se fazer notar e de provocar, dessa vez ao leitor potencial que me fiz, foi a apresentação do livro com uma lógica subversiva na sua estruturação. Os textos que deveriam vir como prefácio e apresentação, tanto quanto a folha de rosto com a ficha catalográfica, vêm nas últimas páginas e não nas primeiras, como costumam ser os obedientes preceitos dos expedientes formais desse artefato. Quase a ouço dizer: o livro é meu e eu faço do meu jeito. O uso de expressões escatológicas ou o desdobramento de sentidos que os lugares podem ter também vão chamar a atenção de quem se der ao exercício que eu fiz. Ela o faz com maestria e sem cair na vulgaridade, algumas vezes dialogando, se apropriando ou adaptando expressões de autores consagrados, ora revelando e assumindo estes usos e diálogos intertextuais, ora não.

A pandemia foi um evento longo para nossa contemporaneidade de valores apressados, ligeiros, lépidos. Deixar as pessoas isoladas, se cuidando e vendo seus entes queridos sucumbirem, impotentemente, foi uma experiência terrível, avassaladora. Pior do que isso foi ter que conviver com pessoas que troçavam, menosprezavam, faziam chacotas dos estertores políticos e físicos dos que estavam vulneráveis a esses dois campos. Tenho a impressão de que esses momentos e algumas das perdas amarguradas de Roberta se deram nesse contexto ou nesse ambiente de degradação que se instalou de 2016 a 2022 no país que uns consideram sério, outros não tanto. 

A cor da capa, ao invés da leveza que traduz, poderia ser sóbria, lúgubre, mesmo. Não é assim porque fazer poemas é um gesto de resistência, respirar poesia é um ato de luta e superação, mesmo que se possa ter ali uma forma de morte, de aceitação, de quebra, de prostração.

Não pensem que foi fácil para mim fazer essa resenha. Não a fiz em um único dia, nem de um jato, como alguns vorazes leitores costumam fazer com livros que lhes são objeto de consumo e alimento. Fiquei ruminando, refletindo, matutando, saboreando, degustando e destilando o que de mais nobre pode vir do envelhecimento de uma bebida poética.

Ainda vou ler mais sobre e de Roberta Tavares, com certeza, se ela disponibilizar outros de seus escritos. Estou aguardando na espreita e, quem sabe, em outra festa literária de autores independentes, resilientes e teimosos como costumam ser os poetas.

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