Memória e desabafo de um tricolor baiano - Gutemberg Armando Diniz Guerra

 




Memória e desabafo de um tricolor baiano


Gutemberg Armando Diniz Guerra


        Sou torcedor do Esporte Clube Bahia desde pequenininho. Nem me lembro quando comecei a exercer essa paixão. Lembro que tive momentos de maior intensidade por motivos que, racionalmente posso até articular uma tradução, mas não sei se essa razão vale para explicar esse sentimento. 

Tive uma fase da vida em que atravessava a cidade de Salvador para assistir aos treinos na Fazendinha. Saía da Ribeira em um ônibus para a Praça da Sé, pegava outro para o bairro do Stiep. Descia no final de linha e caminhava até chegar no local do treino do Esquadrão de Aço que estava em um momento de contratações de celebridades como o treinador Paulo Amaral e jogadores famosos como Sapatão, Canhoteiro, Sanfelippo, Adevaldo, Paz, Jair Bala, Adauri e Marco Aurélio. Ainda havia, na lembrança, remanescentes da fase anterior em que as estrelas eram craques locais ou vindos do interior do estado como Biriba, Marito e Nadinho, campeões brasileiros em 1959, Pão, Baiaco, Gagé e Armandinho. 

Quando comecei a viajar para fora de Salvador por força do exercício profissional, acompanhava os jogos do Bahia sob a justificativa de que esse era um assunto que me permitia um diálogo fluente com meu pai. Ele era um assíduo ouvinte de rádio e sabia tudo sobre o que ocorria no estado da Bahia, Rio e São Paulo pela escuta do seu inseparável aparelho de comunicação alimentado a pilhas e ouvido na varanda, cheirando o perfume do jasmineiro do jardim e dando baforadas no seu Suerdieck Extra 54 adquiridos no Mercado Modelo, em pacotes enrolados em papel manteiga. 

Na época em que passei a morar fora do estado é que se manifestava a intensidade de Beijoca como jogador e em 1988, o Bahia foi campeão nacional, com a elegância sutil de Bobô. 

Tenho acompanhado ainda com fidelidade infanto-juvenil a campanha do Esporte Clube Bahia nos campeonatos estadual, Copa do Nordeste, Copa do Brasil, Campeonato Brasileiro, Libertadores da América e Copa-Sulamericana. Os sentimentos se alternam a cada jogo, variando de sublimes alegrias a profundos desgostos, passando por sentimentos contraditórios em muitos dos jogos assistidos com o coração na mão e vice-versa.

O fato é que ainda não me acostumei com as transformações que vem ocorrendo na prática dos clubes brasileiros. Eles imitam clubes europeus e asiáticos bancados com muito investimento financeiro, planejamento estratégico e empresarial com uma frieza e calculismo impressionantes. Em nossa pátria de chuteiras, como diria Nelson Rodrigues, cada um se sente no direito de opinar, com maior ou menor pertinência, em um exercício democrático e pornográfico da resenha esportiva que, em muitos casos – talvez seja o meu – não passam de desabafos pelas derrotas, empates ou vitórias apertadas e que não chegam a se comparar com as equipes empresariais do Sul e Sudeste do país, muito menos com as das seleções milionárias dos países ricos.

Os lamentos ou pavonices são sempre os mesmos, mantendo-se os objetivos da exaltação do time do coração e degradação do time arquirrival, com argumentos e especulações jocosas, nem sempre social nem politicamente corretas.

Voltando ao comentário sobre o meu desconforto no que se refere às mudanças e, falando sério, considero que o futebol perdeu uma de suas principais características essenciais, qual seja a de representatividade de suas equipes por serem compostas de jogadores produzidos ou projetados a partir dos lugares de origem. Os treinadores, oriundos dos estados em que os clubes se formavam, investiam em atletas que encontravam nas quadras e campinhos de bairros, praias e várzeas, evoluindo com eles até o estrelato e gradativa profissionalização. Vi acontecer algumas trajetórias dessas a partir do meu bairro soteropolitano ou de cidades e povoados interioranos, o que dava um certo glamour ao esporte e uma intimidade provinciana muito agradável por que me fazia sentir parte do time, estando apenas na torcida. Ainda encontramos casos desses, mas o distanciamento da base ao topo é muito grande. Aí me dá uma vontade enorme de apelar para os velhos métodos de convidar peladeiros da praia do Bogari, Campo do Lasca, Boa Viagem, Dendezeiros, Paripe, Coutos, Plataforma, Periperi, Piatã e Sussuarana. Vêm à memória a imagem de um treinador nascido na Ribeira. Ele morava na Avenida Beira Mar e saía andando pela orla de terra e capim da Península Itapagipana. De sunga colorida, sem camisa, uma toalha de banho no ombro, ele parava e observava os jogadores de baba nos campos improvisados nas areias e caminhos. Se visse algum garoto que se destacasse pela capacidade técnica, chamava para fazer um teste no clube em que estivesse treinando. Era comum se dizer que o time que ele treinava era campeão. Nascido na Ribeira, repito, passou pelo Vitória e pelo Bahia. Ficou conhecido por descobrir e revelar talentos a partir da base. O nome dele era Hélio Tapioca.

Eu que assisti treino do Bahia na Fazendinha e no Jardim de Alá, frequentei a Fonte Nova com o Bahia na série C do Campeonato Brasileiro, jogando à noite contra times pouquíssimo conhecidos, sobrevivi aos ataques cardíacos e, por isso, me considero autorizado a fazer todo os comentários sobre essa paixão primal, atávica, ancestral, com direito a ebós e caminhadas de celebração até a colina do Bonfim! 

O fato é que há dois universos distintos que convivem sem se conhecerem: o dos antigos cartolas, agora empresários de Sociedades Anônimas de Futebol (SAFs), cuja lógica é o lucro. Neste universo, estar em um dos quatro escalões do futebol brasileiro é estar no mercado onde se vende artigos, esportivos ou não, como uniformes, camisas, toalhas, chaveiros, copos ou qualquer outro substrato que comporte como ilustração o escudo do clube, ingressos para as competições e, um dos itens mais importantes desse mercado, os jogadores. Investir em jovens com potencial de atleta, guindando-os do anonimato ao estrelato, seja trazendo-os de equipes de menor porte, seja fazendo trocas com equipes reconhecidas pelo tamanho das torcidas, inserindo-os no mundo das apostas, tem sido o movimento que podemos perceber nessa área. Uma eventual convocação para a seleção brasileira é uma cartada de mestre. O valor monetário nesse circuito é de cifras incompreensíveis para quem ganha salário mínimo ou remuneração humilde de trabalhador sujeito às intempéries dos empregos e das relações sociais e econômicas estabelecidas nesse campo.

O universo do torcedor é movido pela emoção em que o coração é quem comanda. Nada desvaloriza o seu time porque a torcida vive da esperança de títulos a ganhar ou da história de vitórias da equipe de sua devoção. Há sempre um arquirrival a fazer contraponto nesse campo de contradições dualistas que estruturam o nosso pensamento e moldam o nosso sentimento.

É do confronto dessas duas lógicas, a da empresa movida pelo vil metal, e a do torcedor, movida pelo coração, que tem sido feita a perpetuação do futebol no imaginário popular brasileiro. No meu caso específico, ficar ali pelo meio da tabela dos campeonatos nacionais e internacionais tem sido a sina do clube do meu coração, mas a gente não para de gritar pelo Bahia. Mais um, Bahia! nosso grito de guerra original contido no hino composto por Adroaldo Ribeiro Costa, foi substituído por Bora Bahia Minha P*!E É assim que se resume a sua história!

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