1 CONTO DE MARCOS SAMUEL COSTA

 

Marcos Samuel Costa.

Essa edição especial abre margem para a forma de narrar tradicional, trazendo, assim, a vivência de uma localidade ou espírito de uma comunidade. O conto de Marcos Samuel Costa nos apresenta uma narrativa que tangencia dois temas: o principal, que trata do fantástico na vida de uma comunidade local no interior do Pará; o secundário, que expressa a vida comum de personagens locais. A sua escrita evoca, em alguns momentos, o espírito de H. P. Lovecraft, trazendo os anseios, a aventura e o mistério vividos pelos personagens.

 

A cidade submersa

 

Quando o barco parou no lugar que iam ficar para pescar, jogaram a ancora, ela pesada afundou rapidamente. Seu destino era a superfície submersa, o chão das águas. Lá, lá no fundo, onde os olhos humanos não podiam ver. Era lá que ela devia repousar. A corrente nela atraca fazia um pequeno ruído que logo era abafado pelas águas. E as águas por sua vez, fazia um ruído ainda maior, tanto entre si ao vento quanto de suas batidas no barco. Mas isso os homens não prestaram atenção. Não querem saber onde a ancora iria parar. Essa história ele ouviu ainda garoto, quando sua mãe vivia o luto da morte do pai. Era necessário desvelar, desfazer o nó de toda a história, Foi quando para surpresa de todos, meu filho, das águas subiu uma mulher, O que fazer mamãe? Veio de onde, Veio das funduras, reclamar seu lugar, a ancora caiu em cima do telhado dela. Seu avô sempre me contou essa história, ele disse que viu a mulher, viu mesmo.

 

Desde então o garoto passou a procurar por essa cidade. Logo percebeu que não tinha nada a ver com Atlântida, com reinos perdidos da história. Essa cidade não fazia parte de nenhuma mitologia da humanidade. Não adiantaria procurar em livros a cidade submersa do Marajó, e se encontrasse algo, iria com certeza se debruçar sobre ficções, só e apenas ficções. Mas achou que poderia encontrar pistas nas narrativas orais. Foi procurar por isso.

 

Visitava comunidades litorâneas e perguntava pela tal cidade submersa. Era motivo de comicidade. A maioria das pessoas achavam hilário. Mas sempre alguém, em alguma comunidade lhe falava sobre essa história, que alguém lhe tivera contado. Sempre ligado a pescadores que iam pescar sobre a cidade, Meu pai falava no furo dos macacos, era nessa mediação, mas é um canal perigoso, sempre aconselhava não se meter por lá, mas os peixes lá batiam bem – lhe disse um pescador certa vez. Mas todas as narrativas não se encontravam em si, se contradiziam. Ou se somavam ou simplesmente pediam o fio da meada.

 

***

 

A ancora atravessou as telhas com violência, quebrando-as. A moradora que estava distraída se assustou, correu até lá, pensou logo consigo: São eles outra vez. Já tinha ordens superiores para não fazer contato com quem estava lá em cima, mas ela não resistiu, por raiva é claro, queria tirar satisfação, mas mais do que isso, ver seus rostos marcados pela luz do sol, sua coloração trabalhada pelo tempo, suas forças, seus cabelos enxutos, a brutalidade efêmera de quem estava lá em cima. Então subiu. Não resistiu, mordeu a isca.

 

Quando colocou a cabeça para fora, sentiu o ar entrando nos pulmões, uma dor intensa lhe acometeu, sentiu vontade de gritar, mas resistiu, os olhava com tanto encanto, paixão. Sua carne estava molhe, balançava com as águas, seus cabelos verdes de musgo, olhos brancos. Tanto tempo no fundo fizeram deles seres feios e assustadores, eram conscientes disso, era um dos motivos para não submergirem mais.

 

Há muitos anos, coisa de uns 20 mil anos atrás, eles subiam a superfície pelo menos uma vez por ano, festejavam as grandes chuvas, como tudo enchia, eles podiam ir a lugares distantes. Festejavam com seu povo que ficou em cima. Mas o tempo também neles ia fazer mudanças, ficam a cada dia piores, assustavam, passavam a não serem tanto mais queridos entre os seus. E os que em cima viviam, eram mortais, e eles não. E cada vez ficava mais difícil conviver com as novas gerações. Até que romperam de vez e as narrativas sobre eles foram sendo esquecidas. Mas nunca completamente.

 

A mulher olhava ainda encantada e sentindo muita dor, se assustou ao perceber que ainda sabia respirar na superfície. Então escutou a conversa deles, falam uma outra língua, isso ela estranhou, mas a fisionomia ainda lembrava seus antepassados. Então gritou algo a eles em sua língua, e eles ouviram, um arrepio atravessou seus corpos e procuraram de onde vinha aquele som tão estranho. Quando seus olhos batem com os dela, foi um pandemônio, invocaram todos os nomes de santo em suas proteções.


***


Pedro teve seu destino marcado por essa história. Sua busca era movida pelo gosto do mistério, sentia que isso não lhe pertencia. Tanto segredo assim poderia fazer mal, tinha medo de ficar louco. Mas persistia, queria chegar lá. Descobrir o peso das âncoras, das correntes, das cordas, das mãos. O verbo ligava sua existência, e era sempre o descobrir. Avançar. Destemer. Mas ninguém lhe apoiava, passou a guardar só para si suas buscas. Não se casou, não teve filhos, sua moradia eram as praias, os lugares, todos os lugares. Rapidamente envelheceu. Um sol nasceu em sua fronte. Ilumina seus dias, porém queimava com violência suas horas. Seus cabelos cresceram, sua renda acabou, perdeu contato com sua família. A última vez que souberam notícias dele, estava vivendo entre pescadores numa praia distante do Afuá. Sua mãe sempre lembrava com afagos dele e chorava, à noite, com saudades. Seus irmãos todos seguiram suas vidas e ele persistindo atrás de vidas que ele nem sequer sabia se de fato existiam.

Ele se tornou breve e longo.

Suas anotações estavam a cada dia maiores. Mesmo que um diário de viagem, mais parecia literatura fantástica.

Alguns relatos anotados:

“Eles sempre reaparecem aos poucos, aqui ou ali se demostram, deixam serem vistos a olhos nus, a olhos humanos, parece que movidos pela curiosidade ou amor, chego a pensar que se deitam com as mulheres, matam os homens, lembram-me muito as histórias narradas por Nicodemos Sena, penso também que eles iluminam algumas mentes. Seu Arnaldo, morador da prainha do lago, entre as ilhas Caviana e Mexiana, na baía de Santa Rosa, disse que já se deitou com os moradores da cidade submersa, com homens e mulheres, sentiu alguma vergonha ao confessar, porém admitia que eram encantadores demais. Mas surge uma outra dúvida maior, é uma cidade ou várias cidades, a primeira vez que soube de um relato sobre essa gente, possivelmente, viviam na Baía do Marajó, entre Muaná e Ponta de Pedras, hoje tão distante do local inicial, as narrativas continuavam, de quem estavam falando? Ficam as infinitas dúvidas e poucas certezas”.

Seu delírio e fascínio cresciam dias após dias. Mas não achava nada se não mais incertezas. A folhas eram escritas, as anotações ganham forma de delírio, mesmo quando transcrevia o mais fiel possível, soava como alucinação, seja de quem narrava ou de quem escrevia:

 

“Este fora o relato de um homem de meia idade próximo à Praia de Joanes sobre: meu avô disse que esteve na cidade, que desceu até o fundo, viu lá as pessoas, os peixes pareciam o que para nós são os passarinhos. Todas as casas eram movediças, sem forma física, mas meu avô não sabia dizer se era a física delas ou o reflexo do sol ao contato com a água. Eles sempre estiveram lá, ele me explicou, a gente que não vê eles. E coisas deles, mistérios deles. Meu avô quando voltou, saiu contando tudo por aí e se deu mal, sua língua prendeu a boca. Ele disse que desceu por convite de uma mulher, que a paixão foi maior, mas quando o descobriram lá baixo, prenderam ela e expulsaram ele com violência, lhe alertando que o mal cairia sobre ele.”

 

Vendo que seu destino perdia de si, decidiu voltar para sua casa. Estava preste a completar quarenta anos de vida e uns vinte anos gastos só com essa busca estranha, anotou mais de duas mil páginas, com relatos fantasmagóricos, amorosos, sexuais, científicos, antropológicos, filosóficos e sociológicos. Sentiu-se farto, sabia muito mais sobre essa cidade sem nome mais do que os próprios moradores. O sem nome carrega a eternidade, e por isso a cidade era chamada assim, Cidade Sem Nome, tanto entre os moradores quanto nas narrativas das pessoas.

 

O mais próximo que chegou do que seria essa existência de baixo das águas foi nos cemitérios submersos na região do Arari, no Marajó, que passam seis meses na seca e seis meses na cheia. Lá fez seus intensos estudos, abriu uma pequena cova, onde estava enterrada uma criança, morta há alguns anos, seu corpo ainda estava quase perfeito, seus olhos brancos e a pele verde de musgo. Pensou em que tipo de vida tinha, se descia até os rios subterrâneos nas grandes chuvas ou ia para o grande Lago Arari? Ficou ali, mais de um ano observando aquele pequeno corpo. Estava a ponto de enlouquecer, quando o prefeito da cidade lhe expulsou com a ameaça de ser preso. Foi embora, mas trouxe o corpo escondido consigo. E jogou no mar com a esperança de ganhar liberdade e passaporte para a cidade submersa. Entre os moradores do Arari, a cidade era como se fosse um céu, narravam uma antiguíssima história sobre uma segunda morada, onde a cidade seria de águas e peixes.

 

Organizou todas suas anotações e publicou seu diário de viagens, sob o título de Cidades Submersas: relatos e anotações sobre a Cidade Sem Nome. O livro vendeu razoavelmente bem, mas foi tido como pura ficção. Acusaram-lhe de querer impressionar com a falsa ideia de verdade. Isso lhe atingiu violentamente.

Sentiu-se frustrado.

 

Decidiu viver sua vida. Conheceu Gustavo, também de meia idade e que lhe roubou o coração. Conheceram-se numa pequena livraria da capital e nunca mais se separaram. Logo se casaram, retornaram para sua cidade natal, Porto da Paz. Mas algo não venceu, a sua paixão por praias e áreas litorâneas, comprou uma casa no litoral, próxima à baía. Era uma casa bonita, de madeira, com um pequeno pátio e muitas plantas. Viviam bem, Gustavo que era professor na cidade e ajudava a manter a casa, o marido continuava escrevendo e ganhando alguma renda, mas nunca fixa. Aos poucos também sentia que seu nome se tornava um mito, mas isso não o assustava. Tinham dez gatos em casa, pretos, brancos, cinzas e amarelos. Pedro recebia correspondência do mundo todo. Sempre escrevia algum artigo e já era tido como um escritor e antropólogo. Citado em vários trabalhos no globo, seu livro já era lido na Inglaterra, Austrália e em vários outros países. Essa tal busca que lhe tirou grande parte da vida parecia não ter sido tão em vão. Mas tinha que assumir, todas as vezes que lhe perguntavam, viu a cidade ou o morador? Ele respondia que não.

Certa madrugada ele fora acordado aos gritos por Gustavo, Pedro, Pedro, acorda, O que tá acontecendo? – perguntou assustado. É ela, é ela. Ela veio até aqui. Quem, Gustavo? A menina..., Que menina? A que tu estavas falando, a menina que tu libertaste, Pedro, é ela, venha ver.


Marcos Samuel Costa é escritor, poeta, com diversos livros publicados, e editor da Variações: revista de literatura contemporânea.


Variações: revista de literatura contemporânea
 XIII Edição - vidas fantasmas: poéticas assombrológicas
  Edição de Bruno Pacífico, 2025.

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