2 POEMAS DE MAILA BONAFÉ
Diagrama
Eu não lembro muito bem; era como se algo me acompanhasse.
Nessa casa, todas as crianças eram submetidas às mesmas perguntas:
“Vocês abriram alguma fresta? Houve algum clarão?”
Todas negavam com a cabeça, já acostumadas a esse interrogatório.
Ninguém jamais podia abrir as portas, as janelas, os rasgos.
Ninguém, depois daquele ano, poderia sair de dentro de si.
Eu não lembro muito bem — e ninguém fala disso.
Cada um daqueles que ainda mora aqui em cima, com o passar dos longos dias, fica cada [vez maior.
Tão maior do que pode suportar.
Aprimorando seus movimentos para o grande dia.
Através dos nossos equipamentos, nós mantemos contato.
Mas ninguém sabe o que somos.
Talvez escrever aqui seja um erro.
Ontem disse a Mazzy2731 que sempre tive um diário.
Ela respondeu que as pessoas que resistem são estúpidas.
Sinto apenas que não quero esquecer de escrever. Só isso…
Depois de um tempo, fiquei completamente ocupada criando aquelas crianças.
Elas são tão rápidas dentro da nossa lentidão.
Eu aprendo muito, na verdade.
Faço mil analogias por dia.
Na sala de estar plantamos, há alguns anos, uma árvore.
Eu digo que plantamos porque a terra está sob o material que isola a casa dos gases.
Se não fosse por elas, nada hoje seria possível.
Em todas as casas do Diagrama: uma árvore para cada três pessoas.
Quando nasci, eles já haviam alcançado o raio da esfera.
Lentamente armazenavam um tubo tão pesado quanto o núcleo:
urânio-235, 115 megatons, previamente calculado para os termoafetivos de alcance.
Todo macróbio alcançado, embebido em um fulgor azulado, contornando o novo-velho azul.
Todos os seres que contavam nas histórias — grandes, minúsculos, invisíveis — não [mais estarão.
Eu conto tudo aqui porque, assim como nós sobrevivemos a algumas destruições, penso que [isto também possa.
Esse é o plano deles.
E eu escrevo com o único feixe de luz que me resta.
Enquanto isso, cuidarei da carne que teima em abrir.
Aquela estrutura antiga de ligações que forma nossos limites não é mais a mesma.
Posso dizer que nossas terminações vistas hoje seriam impossíveis — mas nada é.
Porque, quando observo as crianças na tentativa dura de arrancar o pouco orgânico que ainda as envolve, entendo.
Nós estamos aqui, junto aos metais alcalinos, nos alimentando de outras maneiras.
Infinitas formas desapareceram — e não sei o que pode existir.
Só o que tenho agora são as construções que se limitam à segurança do que supomos necessitar.
Pensávamos que não iríamos suportar. Enganados pela superfície que adiante se romperia. O medo tinha forma de escamas, víamos o corpo se transformando, alcançando uma circunferência impossível.
Desenterramos as nossas armas e as ilustramos com sal e sol. Em mãos muito altas, muito visíveis, nas bordas do vento continental.
Os pontos exatos de onde nossos pés haviam de encaixar, alcançando profundo os minerais sentimentais da história.
E assim continuamos, também o mapa violeta das massas continuava, ultrapassando nossas cabeças, ultrapassando os ouvidos, os olhos: comunicando as vidas, realizando as mortes. “Alguma vez você viu o mar parar? Eu… nunca!”
Envolta em absolutamente tudo. Em profundeza, lavando os corpos dos seus limites.
Maila Bonafé é artista visual e psicóloga clínica formada pela UFRGS. Vivencia a escuta como quem habita uma casa feita de palavras, deixando-se atravessar pelos encontros entre psicanálise, arte e cultura. Entre oficinas de música, grupos e pesquisas, segue inventando ressonâncias no Fórum do Campo Lacaniano de Florianópolis.
Variações: revista de literatura contemporânea
XIII Edição - vidas fantasmas: poéticas assombrológicas
Edição de Bruno Pacífico, 2025.
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