Irene, flor do campo, sal da terra, luz do mundo, baluarte - Gutemberg Armando Diniz Guerra
Irene, flor do campo, sal da terra, luz do mundo, baluarte
Gutemberg Armando
Diniz Guerra
A vida é um sopro, eu sei, por mais
resistência que eu tenha a aceitar sua finitude. É um sopro, sim, a vida, desde
o mito fundado judaico cristão: E formou o
Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em
suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente (Gênesis,
2:7). Este
é um sopro que permanece na memória e se reproduz em gestos, palavras,
histórias daqueles que possam reproduzir, em momentos quaisquer, a convivência
com quem viajou, descansou, partiu. Cada vez que vou a cerimônias que celebram
a vida de pessoas queridas, me deparo com a dificuldade de aceitar que aquele
corpo ali, inerte, representará, a partir de então, uma ausência.
Reconstruo formas de fazer aquela presença infinita, e muitas vezes me sinto
empaticamente associado às confissões religiosas e filosóficas que preveem um
outro plano, um portal, um além, enfim, possibilidades de permanência daquele
afeto que acena com sua partida como finitude.
Foi assim, desta vez com Irene Margarete Hohn,
companheira de muitos anos de nosso colega William Santos de Assis. Na
cerimônia de despedida, um ex-colega de turma de curso ginasial dela, relembrou
a Irene que ele conhecera como uma pessoa serena, firme, afável, mansa. Descreveu
a colega como uma pessoa discreta, que não tinha aquela arrogância dos líderes bem-falantes,
espalhafatosos, mas que era decisiva ao se posicionar com ponderação e sempre
com muita pertinência. Leu o Salmo 90 e, na passagem que trata do tempo,
associando-o à “erva que se renova: de
manhã ela germina e brota, de tarde a cortam e ela seca” (Salmo 90, 5, 6).
Para lembrar os pampas, o pastor lembrou das flores que vicejam nos campos do
Rio Grande do Sul, onde ele fora colega de Irene. Afastaram-se por 35 anos para se reencontrarem no Pará em atividades profissionais diferenciadas, morando na
comunidade humilde da Vila da Barca, como enfermeira. Fez referência a ela como
aquelas flores que vicejam, enfeitam o mundo, passam despercebidas ou pouco valorizadas,
mas que cumprem um papel efetivo no fazer o ambiente mais agradável aos olhos e
ao sentido do olfato.
Outras pessoas se manifestaram ressaltando
as virtudes de Irene como pessoa acolhedora, conselheira, ponderada. Não sei se
buscaram antes o significado do nome Irene, de origem grega, e que teria como
tradução justamente pacífica, pacificadora, segundo minhas buscas. Margarete,
seu segundo nome, seria uma derivação do grego com o significado de pérola.
Temendo destoar, dei ciência aos presentes
dos testemunhos de amigos e amigas que manifestavam seus sentimentos de
solidariedade ao colega e seu filho Kauê pelo momento dessa separação tão
marcante. Falei da minha dificuldade em aceitar esses momentos como de
encerramento de uma relação com pessoas que permanecem e que a fazem permanecer
presente, a partir dali, de outras formas, conforme as partilhas que tiveram durante
a vida.
Eu sempre vou lembrar os delicados cartões
de Natal que Irene fazia com ervas e flores desidratadas sobre papel rugoso,
principalmente depois da menção do pastor amigo. Nunca me sairão da memória os
momentos de partilhas em Marabá, no emblemático Bairro Novo Horizonte, as
conversas à mesa tomando chás de ervas cultivadas nos canteiros do jardim da
moradia do casal. Os cuidados de William e Irene com a sobrinha que viera do
Nordeste para morar com os tios amorosos durante um tempo de não me lembro mais que
circunstâncias assim exigiram.
Nunca vi Irene estressada nem nervosa e
tampouco William colérico ou enraivecido, embora saiba de muitas circunstâncias
em que tiveram que enfrentar desafios hercúleos em um ambiente hostil e
violento da fronteira agrária em que vivíamos.
Flor do campo, mansidão, pessoa luminosa,
iluminada, iluminante foram algumas expressões que ouvi durante o funeral e as associei
imediatamente a algumas passagens do Evangelho e de outros textos, profanos, mas
líricos, que não me lembro quais, mas que ficaram reverberando na minha
memória: sal da terra, luz do mundo, baluarte foram algumas delas.
Sempre me impressionou muito o vigor
laboral do colega William e muitas vezes fui conversar com ele sobre
dificuldades e desafios pessoais. Sempre fui acolhido e, em algumas vezes, me
despedi com um abraço de gratidão. Ouvindo os depoimentos, fui adquirindo uma
convicção de que Irene, Kauê e William formam uma espécie de trindade cósmica
da qual muitos se beneficiam quando deles se aproximam.
Finalizei minha manifestação à Irene
dizendo que, para mim, insistindo na minha resistência à finitude, ela
continuará, e repito: para mim continua, mesmo, presente, sim, naqueles que a
tiveram como malunga nessa travessia terrena que para mim não teve começo nem
terá fim.
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