Meu Primeiro Drummondia - Rayssa Campbell
| Poeta Carlos Drummond de Andrade: obra plena que atrai gerações de admiradores (Foto: Rogério Reis / Tyba) |
Meu Primeiro Drummondia¹
Rayssa Campbell
Meu primeiro Drummondia
como estudante de Letras.
Estou hoje sendo guiada pelos poemas de Carlos,
não posso celebrar o poeta de Itabira
apenas como um monumento.
Preciso falar dele
a partir da minha própria matéria.
Porque, como o poeta,
eu também nasci com um anjo torto,
um desses que vivem na sombra.
Eu poderia recitar José,
perguntar "E agora?",
pois cresci com a perplexidade
de quem se vê encurralada pela injustiça,
pela ausência,
pela invisibilidade.
Eu poderia falar da minha pele.
Das marcas que trago.
Da dor
quando minha pele se fez carne viva,
e de como essa dor não era só minha.
Era uma dor que vinha de antes.
Uma dor de ascendentes.
Eu conheço a mão suja de que fala o poeta.
Não a mão suja de terra, de trabalho.
Mas o triste sujo
feito de doença
e de mortal desgosto.
Um sujo pardo, tardo, cardo.
Uma marca que não sai com água,
porque a água está podre.
Uma mancha
que é a própria memória da opressão.
Eu trago em mim as marcas que a opressão deixou.
E por muito tempo, culpei o mundo.
Eu não tinha ferramentas.
Tinha apenas duas mãos
e um sentimento do mundo
que me esmagava.
Até que, na busca por
entender,
nas aulas de literaturas
africanas em língua portuguesa
do professor Paulo,
eu encontrei este poeta
de Itabira.
E não o encontrei em "Claro Enigma".
Eu o encontrei na fúria de "A Rosa do Povo".
Descobri que, enquanto o Brasil vivia
sua noite fascista,
Drummond forjava uma poesia que não era fuga.
Era um arsenal.
E esse arsenal, feito de palavras,
atravessou o Atlântico.
Poetas como Agostinho Neto, em Angola,
não precisavam de um lirismo choroso.
Precisavam de uma poesia que enfrentasse a história.
E a encontraram em Drummond.
Quando Neto escreveu seu manifesto:
"criar / criar com os olhos secos",
ele dialogava com Drummond.
Ele recusava a sepultada e merencória infância.
Ele escolhia lutar.
A poesia de Drummond se tornou
para os povos africanos
a plena e real liberdade humana.
Eles pegaram a pedra de Drummond
e a ressignificaram.
Para uns,
a pedra se tornou a gramática da esperança
num caminho doloroso.
Para outros,
a pedra se tornou as pedras montadas sobre a língua,
denúncia da censura
que veio depois da liberdade.
Eles me ensinaram.
Que a minha dor, as minhas marcas,
o meu triste sujo,
não são para me paralisar.
São a minha matéria.
O poeta de Itabira,
os poetas de Angola e Moçambique,
me deram a licença
para transformar a melancolia e o rancor
em força.
Eles me ensinaram que não estou sozinha.
Por isso, o poema que escolho
é o manifesto que uniu Itabira a Luanda.
A epígrafe da própria luta.
O poema que diz
que o meu eu
só faz sentido no nós.
Mãos Dadas
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
Minha matéria é esta pele marcada.
E os homens e mulheres presentes,
aqui e do outro lado do oceano,
são meus companheiros.
Obrigada, Drummond.
Obrigada, meus professores.
Obrigada.
Referências:
ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia
poética. Organizada pelo autor. São Paulo: Companhia das Letras, [s.d.].
E-book (PDF). ISBN 978-85-8086-322-2.
DE CASTILHO, Ataliba T. A poesia de
Carlos Drummond de Andrade. Alfa: revista de linguística, 1964.
FONSECA, Maria Nazareth Soares.
Carlos Drummond de Andrade em paisagens literárias africanas. Via
Atlântica, v. 13, n. 2, p. 87-97, 2012.
SECCO, Carmen Lúcia Tindó Secco.
Carlos Drummond de Andrade: o “poeta de Itabira” evocado em África. Brasil
e África: como se o mar fosse mentira. São Paulo-Luanda: Editora UNESP-Chá de
Caxinde, p. 145-158, 2006.
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¹ - DRUMMONDIA é um evento que celebra a poesia e acontece há 26 anos. Enquanto o Brasil celebra o 31 de outubro como o “Dia D da Poesia”, a Universidade da Amazônia, por meio do curso de Letras, comemora, desde 1997, o DRUMMONDIA, evento que foi pensado para celebrar a poesia. É quando alunos, professores, convidados, comunidade acadêmica e público em geral se reúnem para celebrar o mais expressivo poeta brasileiro da modernidade, Carlos Drummond de Andrade: o mineiro mais universal do Brasil. Assim, nesta terça, 31/10, às 9h, no mini-auditório da Unama Gentil, professores e estudantes de Letras, Pedagogia e História tivemos uma aula-lúdica, com roda de conversa e exposição de varais. Nesta edição do DRUMMONDIA, contamos com dois renomados poetas e pesquisadores: no centro da roda de conversa esteve o Dr. JOÃO DE JESUS PAES LOUREIRO, e na mediação o Dr. PAULO NUNES. A programação foi organizada pelas professoras Elaine Oliveira e Ermelinda Báez. (FONTE: @letras.unamaoficial)

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