Contravenções lúdicas - Gutemberg Armando Diniz Guerra
Contravenções lúdicas
Gutemberg
Armando Diniz Guerra
Um dos meus filhos é encantado com essa
diversão e tenho tido atritos com ele por não ceder ao seu prazer de
aventurar-se a cortar a linha dos outros empinadores, todos usando o que chamam
genericamente de linha chilena. Antes se dizia cerol o tempero que se passava
na linha para fazê-la eficaz em cortar os adversários e levar as coloridas
pipas “ao vai” ou chinar, ou desgarrar-se ao sabor do vento pródigo dos julhos!
Nos
meus tempos de juventude, na Ribeira, em Salvador da Bahia de Todos os Santos,
moíamos vidros de garrafas brancas com pedras de granito sobre calçadas de
cimento liso, fazíamos um creme misturando o resultado da moagem com cola de
sapateiro ou goma de mandioca e passávamos nas linhas antes de usá-las na
misteriosa arte de disputar os ares com outros gladiadores.
A dispersão das pessoas, a ausência ou
pouca frequência de motos e bicicletas tornava o folguedo menos perigoso. O
crescimento das cidades e o incremento de tecnologias modernas tornaram o
brinquedo proibido tanto quanto os balões de São João, antes tão presentes nas
noites escuras daquelas festas juninas.
Em área muito arejada da margem esquerda de
um grande e belo rio quase desembocando em uma baia, uma verdadeira multidão de
crianças, jovens e adultos enchem as tardes com seus carretéis de linha
encerada, erguendo nos ares pipas de todas as cores. Uma verdadeira festa! Carros de polícia trafegam com suas luzes
piscando em alerta, enquanto os lúdicos contraventores se divertem naquela
estranha faixa liberada para os incorrigíveis moleques em seus salameleques
próprios da prática desse exercício aerodinâmico beligerante.
Na minha prática de pesquisador curioso, procurei
saber onde se vendia a linha proibida. Fui ao ponto indicado e perguntei sobre o
fio criminoso. Foi-me negada a prática comercial desse produto com a oferta
apenas de carretéis de inofensivas teias. O olhar desconfiado do homem se
mascarava pela voz firme e imperativa. Não insisti e aceitei a disponibilizada
fiação. Comprei a linha branca e enquanto meu filho erguia seu artefato. Voltei
a perguntar a um jovem onde ele adquirira a sua linha proibida que ele exibia
em um carretel laranja enquanto acompanhava uma batalha entre pipas. Ele me
indicou, sem pestanejar o mesmo lugar onde me negaram haver o artefato. Eu era
um estrangeiro marginal naquele marginal mundo de pessoas acima da lei.
Meu filho perdeu sua primeira pipa tão
logo a erguera e passou a ser reticente na exibição das outras. Procurou um
canto mais distante de onde uma multidão de objetos voadores se entrelaçavam e
se deixavam desligar dos seus empinadores, provocando correrias dos que
tentavam pegar as desgarradas pelo corte do cerol.
Voltei para casa com um jovem insatisfeito
com sua linha branca vulnerável ao corte dos contraventores que se divertiam
excitados com o prazer de fazer os outros ou eles mesmos chinarem. A tarde
ensolarada e muito fresca na beira do rio tem outras regras que contrariam às
leis elaboradas e promulgadas em gabinetes refrigerados e distantes da vida que
se deixa ceifar por outras linhas.
Não haverá, certamente, sob meu controle,
mais essa diversão na vida do menino que precisa entender que a vida vale muito
mais do que uma pipa “ao vai”!

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Assino em baixo da sua publicação, amigo. E curioso, lá em Parintins/AM, minha terra natal, o processo de fabricação de cerol era o mesmo que vc descreve em seu conciso e objetivo texto. Um grande abraço e abençoado fim de semana.
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ResponderExcluirParabéns! Excelente a sua crônica, caríssimo Professor Doutor Gutemberg. Não brinquei de empinar papagaio (era assim que chamávamos) quando criança. Vi, porém, muitas crianças, adolescentes e até adultos praticaram a brincadeira, que, com o tempo, passou a ser recriminada devido à linha cortante. Em Marabá já houve vários acidentes graves. Um deles foi fatal, em 2021. A linha cortou a garganto do motoqueiro, que morreu na hora. Muito triste!
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