Contravenções lúdicas - Gutemberg Armando Diniz Guerra

 

Djanira 


Contravenções lúdicas


Gutemberg Armando Diniz Guerra


O mês de julho em Belém é o mês de férias escolares e de diversões aladas com o empinar de pipas, papagaios e rabiolas. Os tempos mudaram e as notícias sobre acidentes com linhas enceradas com produtos que as tornam cortantes ganham as manchetes de jornais escritos, falados e televisivos como se fossem verdadeiras narrativas e filmes de realidade mórbida e de terror. Os comentários em toda a cidade versam sobre a morte de um garoto que teria ido a óbito por conta dessa arma assassina, proibida de ser comercializada e utilizada no lazer mais acentuado desse período. Uns dizem ter sido em Belém e até dizem ter sido no Bairro do Jurunas, outros dizem ter sido em Santa Isabel, município próximo da capital.

Um dos meus filhos é encantado com essa diversão e tenho tido atritos com ele por não ceder ao seu prazer de aventurar-se a cortar a linha dos outros empinadores, todos usando o que chamam genericamente de linha chilena. Antes se dizia cerol o tempero que se passava na linha para fazê-la eficaz em cortar os adversários e levar as coloridas pipas “ao vai” ou chinar, ou desgarrar-se ao sabor do vento pródigo dos julhos!

 Nos meus tempos de juventude, na Ribeira, em Salvador da Bahia de Todos os Santos, moíamos vidros de garrafas brancas com pedras de granito sobre calçadas de cimento liso, fazíamos um creme misturando o resultado da moagem com cola de sapateiro ou goma de mandioca e passávamos nas linhas antes de usá-las na misteriosa arte de disputar os ares com outros gladiadores.

A dispersão das pessoas, a ausência ou pouca frequência de motos e bicicletas tornava o folguedo menos perigoso. O crescimento das cidades e o incremento de tecnologias modernas tornaram o brinquedo proibido tanto quanto os balões de São João, antes tão presentes nas noites escuras daquelas festas juninas.

Em área muito arejada da margem esquerda de um grande e belo rio quase desembocando em uma baia, uma verdadeira multidão de crianças, jovens e adultos enchem as tardes com seus carretéis de linha encerada, erguendo nos ares pipas de todas as cores. Uma verdadeira festa!  Carros de polícia trafegam com suas luzes piscando em alerta, enquanto os lúdicos contraventores se divertem naquela estranha faixa liberada para os incorrigíveis moleques em seus salameleques próprios da prática desse exercício aerodinâmico beligerante.

Na minha prática de pesquisador curioso, procurei saber onde se vendia a linha proibida. Fui ao ponto indicado e perguntei sobre o fio criminoso. Foi-me negada a prática comercial desse produto com a oferta apenas de carretéis de inofensivas teias. O olhar desconfiado do homem se mascarava pela voz firme e imperativa. Não insisti e aceitei a disponibilizada fiação. Comprei a linha branca e enquanto meu filho erguia seu artefato. Voltei a perguntar a um jovem onde ele adquirira a sua linha proibida que ele exibia em um carretel laranja enquanto acompanhava uma batalha entre pipas. Ele me indicou, sem pestanejar o mesmo lugar onde me negaram haver o artefato. Eu era um estrangeiro marginal naquele marginal mundo de pessoas acima da lei.

Meu filho perdeu sua primeira pipa tão logo a erguera e passou a ser reticente na exibição das outras. Procurou um canto mais distante de onde uma multidão de objetos voadores se entrelaçavam e se deixavam desligar dos seus empinadores, provocando correrias dos que tentavam pegar as desgarradas pelo corte do cerol.

Voltei para casa com um jovem insatisfeito com sua linha branca vulnerável ao corte dos contraventores que se divertiam excitados com o prazer de fazer os outros ou eles mesmos chinarem. A tarde ensolarada e muito fresca na beira do rio tem outras regras que contrariam às leis elaboradas e promulgadas em gabinetes refrigerados e distantes da vida que se deixa ceifar por outras linhas.

Não haverá, certamente, sob meu controle, mais essa diversão na vida do menino que precisa entender que a vida vale muito mais do que uma pipa “ao vai”!



Variações: revista de literatura contemporânea 
XI Edição - outras margens, nenhum limite 
Edição de Marcos Samuel Costa

2024

Comentários

  1. Assino em baixo da sua publicação, amigo. E curioso, lá em Parintins/AM, minha terra natal, o processo de fabricação de cerol era o mesmo que vc descreve em seu conciso e objetivo texto. Um grande abraço e abençoado fim de semana.

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  2. Parabéns! Excelente a sua crônica, caríssimo Professor Doutor Gutemberg. Não brinquei de empinar papagaio (era assim que chamávamos) quando criança. Vi, porém, muitas crianças, adolescentes e até adultos praticaram a brincadeira, que, com o tempo, passou a ser recriminada devido à linha cortante. Em Marabá já houve vários acidentes graves. Um deles foi fatal, em 2021. A linha cortou a garganto do motoqueiro, que morreu na hora. Muito triste!

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